NESTE ARTIGO

  • Jerez produz vinhos há milênios, mas seu consumo despencou após 1980
  • Muitos pesos e muitas medidas: diferentes vinhos para diferentes mercados
  • A Rumasa, um verdadeiro império dos negócios espanhóis, e sua relação com a pancada
  • Como nasceram os Cream.

Com mais de 3.000 anos de história, o passado de Jerez é brilhante. Porém não se pode dizer o mesmo dos últimos 40 anos, quando a região experimentou uma forte queda em suas vendas. O que aconteceu com Jerez a partir da década de 1980 e quais suas perspectivas é a reflexão que ousamos propor neste texto.

 

A queda do volume a partir de 1980

O Vinho de Jerez atingiu seu pico de vendas no início da década de 1980 e, desde então, apresenta uma queda de volume dramática. Em 2018 o volume total foi de apenas 25% do verificado em 1983.

Esses dados foram obtidos nos Relatórios anuais de atividade do Consejo Regulador del Vinos de Jerez, entidade formada pelos produtores e vinícolas da região e consolidados pelo site www.sherrynotes.com 

 

Sherry Sales Statiscs @Sherrynotes.com
Evolução das vendas da região em milhões de litros, de 1975 a 2018.

Como pode ser observado, no período compreendido entre 1982 a 2018, as vendas saíram de um patamar de 150 milhões de litros para 30,6 milhões, um tombo de quase 75%. Ou seja, de cada quatro garrafas vendidas no início da década de 80, apenas uma é vendida hoje em dia.

 

Seria essa tendência de queda uma inexorável evidência de que o Jerez é um estilo de vinho condenado ao ostracismo?

 

Antes de partirmos para conclusões apressadas (e trágicas) é importante notar que há uma série de nuances por trás dos números.

 

 

 

Antiga sede da Rumasa, Torres de Colón, em Madrid, renomeadas Torres de Jerez

 

 

 

Um breve histórico da derrocada

Enquanto no mercado interno (Espanha), o volume manteve-se relativamente estável, as exportações para os três principais mercados, Grã-Bretanha, Holanda e Alemanha, caíram dramaticamente nos últimos 40 anos. Enquanto a Espanha consome um tipo específico de Jerez, grande parte do mercado externo consome outro. Será que todos estilos de Jerez mostraram a mesma queda no volume?

O APOGEU DA RUMASA

Parece incrível, mas os planos megalomaníacos de um único homem quase destruíram um vinho com mais de 3.000 anos de história. Se o leitor considerar que essa afirmação é um exagero, aperte os cintos e acompanhe essa estória, mais parecida com uma novela, mas que aconteceu durante a ditadura de Franco, na Espanha.

Rumasa é o nome da empresa ou, talvez fosse melhor dizer, de um conglomerado de empresas que desempenhou o papel de protagonista principal dessa novela. Criada em 1961, seu nome é a abreviação de Ruiz Mateos S.A., sobrenome de seu fundador, José María Ruiz Mateos, filho de um pequeno Almacenista.

Em seu auge, a Rumasa chegou a controlar cerca de 800 empresas. Como um polvo, estendeu seus tentáculos para os mais diversos setores da economia. Apenas para citar alguns exemplos, chegou a controlar 18 bancos, além de seguradoras, supermercados, hotéis, etc. Atingiu um tamanho tão significativo, a ponto de representar 2% de todo PIB da Espanha.

Cumpre ressaltar que Ruiz Mateos era ligado ao círculo de poder franquista e também à Opus Dei, uma instituição ultraconservadora da Igreja Católica, com forte influência no governo do “Generalissimo” Francisco Franco. Franco governou a Espanha, como ditador, de 1938 a 1975 – ano de sua morte – exercendo forte influência sobre a economia, assim como todas outras áreas do país.

Atribui-se a essas ligações privilegiadas da Rumasa com os donos do poder como o principal fator para pujança de seus negócios e acesso privilegiado a linhas de crédito públicas, além de incentivos e subsídios para os negócios. Turbinado por isso, o grupo saiu de um pequeno negócio em Jerez para se transformar numa potência econômica.

 

 

 

 

A PARTIR DE JEREZ, UM IMPÉRIO

A expansão da Rumasa

Mas como o nosso tema é vinho – e Jerez em especial -, vale dizer que 18 Bodegas de Jerez faziam parte do conjunto de empresas controladas pela holding. E a ligação com essa região vinícola era tão grande que a administração central da Rumasa, que em seu auge chegou a empregar 60.000 pessoas, tinha sua sede numa torre de escritórios, em área nobre de Madri, que teve seu nome alterado com para o sugestivo “Torre de Jerez”.

Partindo do negócio herdado do pai de seu fundador, a Zoilo Ruiz Mateos Almacenista, a Rumasa adquiriu outras Bodegas e passou a exportar seus vinhos para a Grã-Bretanha. Em 1964, numa agressiva tacada comercial, Ruiz Mateos assinou um contrato de fornecimento, totalmente fora dos padrões comerciais convencionais, com um grande varejista inglês, a  Harveys of Bristol .

De acordo com esse contrato, a Rumasa deveria fornecer todo o estoque demandado pelo cliente pelos próximos 99 anos. O objeto do contrato de fornecimento era um tipo de Jerez que era o grande sucesso de vendas na época:  o Bristol Cream (que nada mais era do que um blend de vinho seco de Jerez com vinho doce ou o mosto retificado).


VINOS DE CABECEO: 
O NASCIMENTO DOS CREAM

Foto kibada do www.SherryNotes.com

É curioso observar que esse estilo de Jerez, que contempla o Cream, Pale Cream e Medium, foi criado para atender o consumidor inglês. Nasceu do esforço de um varejista inglês de tornar o vinho mais “vendável” ao misturar o Jerez de estilo oxidativo (Oloroso) com o doce Pedro Ximenez. E passou a se chamar Bristol Cream, pela cidade onde foi criado e o caráter mais untuoso, ou cremoso, do blend.

CONTINUA…

 

 

“Pedro” sisseck
O Dinamarquês que foi picado por jerez

 

O dinamarquês e produtor de vinhos Peter Sisseck, bem conhecido por fazer um dos mais caros vinhos espanhóis (Pingus) e mais recentemente comprar seu château em Bordeaux (Rocheyron), é o mais novo produtor de Jerez. E não se trata qualquer anedota como de 1º. de abril.

Em uma conversa com o consórcio dos vinhos de Jerez (@sherrywinesjerez) comentou que a região é a mais empolgante do mundo para se fazer vinhos. Chega de blábláblá e vamos com os principais momentos da conversa. Aproveite, pois não conseguiram salvar a conversa lá no IG. De nada!

 

 

“Sou um dinamarquês que chegou à Espanha há 30 anos, vindo da escola francesa de enologia. Cheguei para trabalhar em Hacienda Monasterio, que tem forte ligação com Jerez, entre 1993 e 1994. Aí tive meu contato com a região. Em 1995 comecei com Pingus mas sigo até hoje como assessor (e sócio) em Monasterio”.

“Tivemos a sorte de encontrar uma bodega à venda, o Almacenista Zamorano. Das 100 botas existentes, selecionamos 68 para iniciar nosso projeto, que já tem nome definido: Bodega San Francisco. Deixamos as botas 2 anos sem refrescar para entender as personalidades que haviam ali”.

“Meus projetos em Ribera del Duero e Bordeaux são orgânicos e biodinâmicos. Em Jerez ocorrerá o mesmo.”

 

 

“Não há zona mais interessante no mundo para se fazer vinho hoje em dia! Há história, solo e expressão únicos, além da vontade de mudar e evoluir. É o vinho mais singular que podemos encontrar, para os de crianza biológica, pois o processo oxidativo pode ser reproduzido em outras regiões. Muitas zonas vitivinícolas do mundo se balizam em Bordeaux ou Borgonha. Jerez é inimitável!”

 

 

O PROJETO JEREZ

Carlos del Rio González-Gordon pertence à família proprietária de González Byass e é sócio de Sisseck no novo empreendimento em Jerez.

“Hoje trabalhamos com dois pagos: Balbaína e Macharnudo. Em Balbaína temos um vinhedo de 8 ha. chamado Corrales, na parte mais alta de Balbaína com vinhas com 35 anos de idade. A ideia é pouco a pouco replantar todo o vinhedo com clones antigos da Palomino Fino, com peles mais grossas”. “Macharnudo produz um dos meus Finos favoritos, o Inocente, mas é um pago com 260 ha. Lá temos 2 ha.”

 

“A ideia é produzir apenas Finos. Desde o começo perguntava aos que trabalhavam na região por que não se fazia vinhos de vinhedos específicos em Jerez. E comentavam que a crianza biológica é tão potente que apagava a expressão do vinhedo. Nunca concordei com esta afirmação. Hoje sabemos que tanto o vinhedo de origem das uvas, quanto as leveduras que atuam na fermentação e na crianza fazem diferença”.

“Por outro lado a crianza biológica realmente é algo único. Pode-se ver algo em Tokaj e no Jura, mas Jerez é a referência para este processo. Fazer um vinho em região tão quente, com expressão tão fresca é algo mágico! E para que a flor desenvolva bem não se deve adicionar sulfitos”.